Ministério do Esporte Confira o 24º texto da série de crônicas de Nelson Rodrigues
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Confira o 24º texto da série de crônicas de Nelson Rodrigues

O portal do Ministério do Esporte publica até o mês de junho, às vésperas da Copa do Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1970. Os textos foram publicados no livro “A Pátria de Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro pelo ministro do Esporte, Aldo Rebelo.

São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.

Confira abaixo a 24ª crônica da série: “A Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.

"Foi a vitória do escrete, e mais: — foi a vitória do homem brasileiro, que é, sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões."

A Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado (1)

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo. Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé-rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu, assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de reis.

De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo. Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E sofríamos, porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da grande véspera. Luzes de macumbas nas esquinas, botecos iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil ser profeta.

Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chicabon. Agora, não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples crioulinha favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana D’Arc. De repente, todas as esquinas, todas as ruas estão consteladas de Joanas D’Arc. E os homens parecem formidáveis como se cada um fosse um são Jorge a pé — um são Jorge infante, maravilhosamente infante.

Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais, folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente descobrimos um novo Pelé. E repito: — feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o Possesso, surgiu contra a Espanha. Foi o novo Pelé proclamado.

Amigos, o Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um rútilo epiléptico. Ao marcar os dois gols contra os espanhóis, pendia dos seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se lembram dos seus dois gols contra o Chile. O Mané estava na meia-esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico, acrobático. Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.

O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E, ontem, foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o escore: 1 x 0. Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: — “Vamos repetir 50?” Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da derrota. O que eu queria dizer é que, em seguida ao gol da Tchecoslováquia, Amarildo apanha a bola. Nos dois últimos jogos ele fora bem pouco Amarildo e bem pouco Possesso. Desta vez, porém, partiu para o gol. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai para cortar o centro. Era chegado o grande momento. E então o Possesso enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola, também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o empate, mas era já o bi. O trágico é que começara, de véspera, o carnaval da vitória. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e tão passional. O escrete tinha de vencer porque não era somente o escrete, era também o Brasil, era também o homem brasileiro.

No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o Possesso. Nunca o Possesso foi tão dostoievskiano como no segundo gol. Novamente adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava Zito. E o Dostoiévski deu-lhe o gol. Brasil na frente. Batida a Tchecoslováquia. Veio o terceiro, de uma bola alta de Djalma Santos. Vavá, furioso como um cossaco do Don, ou do Kuban, meteu a cabeça. A Tchecoslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de são Jorge.

Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram a vitória. Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: — a Rússia e os Estados Unidos já começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete, e mais: — foi a vitória do homem brasileiro, que é, sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões. Convença-se, leitor: — você é napoleônico. Hoje, o personagem da semana é o escrete, é o Brasil, é o brasileiro, é cada um de nós, somos todos nós, possessos, amarildos do Brasil.

O Globo, 18/6/1962

(1) Título sugerido pela edição do livro Brasil em campo (Nova Fronteira, 2012). A crônica foi publicada originalmente na coluna “Meu personagem da semana” sem título. (N.E.)

Clique neste link e confira arquivo em pdf com a íntegra do livro "A Pátria de Chuteiras"

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